O que resta da raquete do Poço do Bispo - Pr. David Leandro Silva, Verão de 2009
As memórias eléctricas... São aquelas memórias que eu tenho das várias carreiras de eléctricos que usei/usava de e para casa. Eram elas o 3, com os seus carros-salão (os eléctricos grandes), o 16 sempre (geralmente, para ser mais correcto) acompanhado do seu atrelado e o 27, pequeno no tamanho (dos carros, entenda-se), grande no serviço - até que o autocarro 18 voltou a passar na Afonso III.
Eram elas as carreiras da linha do Poço do Bispo e antes que comecem a dizer "ai e tal, o 3 só foi até lá depois de 1975" ou "antes havia o 9" defendo-me dizendo que estas são aquelas de que me lembro e que usei!
Do 3, que ia para o Arco do Cego, via Baixa, recordo-me, curiosamente, de dois estoiros da "breca" (o nome pelo qual eram conhecidos os disjuntores, corruptela do break inglês). Um desses estoiros foi na Rua da Madre Deus, a descer em direcção a Xabregas. O guarda-freio resolveu meter os pontos todos do controller e deixa-se ir, assim, descida abaixo. Como seria de esperar, os motores não gostaram de tanto "alimento" e não foram de modas: "breca" a saltar acompanhada de todas as velhinhas que iam dentro daquele carro. O segundo episódio foi na Rua da Prata, ia eu com a minha irmã. O eléctrico entra nessa rua vindo da R. da Alfândega e para no primeiro semáforo. Quando arranca apanha os sinais todos abertos e, depois de passar pelo cruzamento da R. da Conceição, vai de meter os pontos todos e subir a R. da Prata "a 9". Começo a ouvir o zumbido típico de motor eléctrico em sobretensão e só tenho tempo de dizer para a minha irmã "tapa os ouvidos". Acho que nem cheguei a acabar a frase. O disjuntor disparou e a minha irmã vira-se para mim, ainda mal-refeita do susto e pergunta-me "como é que sabias?"!
O 16, de Algés e mais tarde de Belém, era mais suave e tranquilo. Até pouco antes de passar a regime de agente único era feito quase exclusivamente por carros ligeiros com reboque, pelo que aventuras destas, com eléctricos a "ir a 9" nunca aconteciam por lá. Por isso, histórias com o 16 lembro-me de poucas, mas uma das que me lembro melhor foi a de uma correria com um amigo meu atrás de um na Rua da Alfândega. Começamos a correr atrás do eléctrico perto da R. dos Fanqueiros, na esperança de que o trânsito nos ajudasse a apanhar o eléctrico. Sempre que estavamos quase a passá-lo o trânsito avançava e nós ficavamos para trás. Deu luta, mas por fim conseguimos chegar à paragem ao mesmo tempo do eléctrico. Ao entrar eu ainda disse "só faltava agora era que ele ficasse nos Caminhos-de-ferro" (já estavamos na era do agente único e aquele era um carro bidireccional). Dito e feito: chegados aos Caminhos-de-ferro o eléctrico ficou vazio e o guarda-freio manda-nos sair, com aqueles modos simpáticos dos anos '80 do século que passou, principalmente quando os interlocutores eram putos imberbes! O resto do caminho até Xabregas foi feito a pé.
Com o 27, o eléctrico de Campolide, via Pr.Chile e Av. Novas, a história já mete mais respeito. Num dia de muita chuva, e depois de uma vagarosa e cautelosa descida da Afonso III, o eléctrico chegou finalmente ao cruzamento da Madre Deus. A quantidade de água e de pedras em cima da via impediam que o guarda-freio visse para onde estava feita a agulha pelo que optou por fazê-la manualmente. Feita a agulha e encharcado o guarda-freio, reiniciamos a viagem. O eléctrico passou pela agulha e nisto sentiu-se um solavanco, com o eléctrico a subir e de seguida a descer ficando, miraculosamente, encarrilado, mas virado para a Cç Cruz da Pedra, em direcção a Santa Apolónia! Marcha atrás e nova tentativa de fazer a agulha. Novo avanço e resultado idêntico. Só à 3ª ou 4ª e com o guarda-freio a pingar é que finalmente aquela lanceta ficou virada para o sítio certo! A quantidade de areia e pedras que se juntaram não permitiam que a agulha funcionasse em pleno o que fazia com que o eléctrico teima-se em seguir em frente. Nunca percebi como conseguimos passar em todas as tentativas sem descarrilar!
E porque me lembrei de tudo isto hoje? É simples: faz hoje 18 anos que circularam pela última vez eléctricos até ao Poço do Bispo. Foram os da carreira 3, pois, nessa altura o 16 já só funcionava aos dias úteis e por isso o último tinha circulado no dia 15, sexta-feira. Quanto ao 27, este havia terminado cerca de 15 meses antes, em Agosto de 1990.
No dia seguinte, dia 18, entrou ao serviço a carreira 105 de autocarros do Martim Moniz até ao Poço do Bispo (uma versão reduzida do 3) e a 13A (também de autocarros) foi renumerada para 104 e "esticada" a Santos (ficando numa versão reduzida num extremo e desviada no outro do eléctrico 16). Tudo isto no dia em que a linha completaria os 90 anos de vida! Quanto ao 27, tinha sido substituido por mais uma chapa no autocarro 18 em Agosto do ano anterior.
Das carreiras de autocarros que as substituiram, apenas resta o 104 transformado pela Rede 7 em 794 e o 18 (718 na Rede 7), que continua a seguir, sensivelmente, o mesmo percurso do 27 entre o Poço do Bispo e Campolide. O 105 morreu de morte "matada" (e não "morrida") quando se fez a primeira fase da Rede 7, em Setembro de 2006, alegadamente por falta de procura, não chegando a completar os 15 anos de existência.
Actualmente de toda a linha restam apenas os carris entre a Rua da Alfândega e a Estação de Santa Apolónia, a maioria dos quais enterrados em alcatrão, e o pequeno troço que se vê na imagem, situado no extremo da raquete do Poço do Bispo, autêntico monumento à linha que em tempos serviu a zona, mas verdadeira armadilha para quem por ali passa a conduzir um carro ou, principalmente, motas!